Documentary · DV · 2008 · 30′

Directing of the film “A Caminho do Resto do Mundo” for the theater company Visões Úteis. The in itinere play “Resto do Mundo” consists on a taxi journey along the old Porto neighbourhoods and is based on the text “Heart of Darkness” by Joseph Conrad. The film “A Caminho do Resto do Mundo” consists on the crossing between the visual documentation of the play and the results of a workshop that involved teenagers from that neighbourhoods, during which the participants were challenged to shoot in super8 film, their personal view of their own surroundings.

 

 

 


Article about the documentary in Publico

Puseram uma Super 8 nas mãos de rapazes e raparigas de bairros degradados do Porto. Bárbara filmou mulheres a dançar na rua. Cláudio filmou o mar e a escola onde já não vai. Ricardo recusou filmar a droga. O resultado é um documentário que mistura estas imagens, um texto literário e uma peça de teatro. Chama-se A Caminho do Resto do Mundo. E é, acima de tudo, uma viagem pelo Porto esquecido.

No início, alguns arquearam o sobrolho de espanto, outros puseram ar de meias-tintas. Não é todos os dias que se vê os miúdos do bairro com uma câmara de filmar na mão a querer apanhar tudo: a mãe à volta do fogão, as mulheres a dançar no meio da rua, o resto das crianças a jogar à bola… Cenas do quotidiano num bairro social do Porto, enfim, que integram agora o filme A Caminho do Resto do Mundo, que a companhia de teatro Visões Úteis vai apresentar no próximo Festival de Teatro de Expressão Ibérica, no Porto.

Na sessão de visionamento está Cláudio Augusto, 16 anos. O cabelo cortado rente deixa ver um brinco na orelha. Mora no Bairro do Cerco desde que nasceu. Há dois anos, deixou a escola para trabalhar. “A minha mãe importou-se mas eu não gosto de estar preso.” Distribui publicidade. Pagam-lhe 400 euros por mês. “É todos os dias. Das oito e meia da manhã às cinco. O patrão vem-me buscar de carrinha, põe-me numa rua e dá-me os papéis para distribuir. Faço uma rua e depois vou para outra…” Se não contarmos o sobrinho de cinco anos, Cláudio é o único homem da casa, onde vive com a mãe e uma irmã. Quando lhe deram a Super 8, filmou o sobrinho a brincar na rua, as casas, a escola onde já não vai. “Também filmei a praia, mas isso não apareceu. O nosso passatempo no Verão era ir para a praia.” E no Inverno? “É estar em casa, na cama, a jogar computador.”

Além das filmagens feitas por quatro jovens dos bairros sociais do Porto, o filme A Caminho do Resto do Mundo inclui citações de um texto do escritor Joseph Conrad (O Coração das Trevas, inspiração para Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola) e mistura-o com o registo fílmico de uma peça de teatro. Confuso? Vamos por partes. Na origem, o espectáculo O Resto do Mundo era uma peça de teatro. Pouco convencional, mas teatro ainda assim.

O espectáculo da Visões Úteis desenrolava-se dentro de um táxi verdadeiro no qual os espectadores entravam para uma viagem pela zona Oriental do Porto, onde as autoestradas se cruzam com hortas e com bairros sociais que são sinónimos de exclusão. Mais tarde, a companhia decidiu transformar o registo vídeo da peça num documentário a que chamou A Caminho do Resto do Mundo. “Queríamos que o trabalho funcionasse como objecto autónomo e com um novo olhar”, conta Catarina Martins, da Visões Úteis. E foi então que o realizador Pedro Maia teve a ideia de pôr jovens a filmar os bairros onde vivem.

Perdidos no deserto

Nos meses seguintes, oito adolescentes dos bairros S. João de Deus, Lagarteiro e Cerco foram desafiados a participar num workshop para depois poderem filmar em Super 8 a sua visão do seu bairro. Do grupo inicial, só quatro chegaram ao fim. Dos quatro, um não apareceu à sessão de visionamento, no salão da Junta de Freguesia de Campanhã. “O facto de a vida destas populações – e não falo de toda a gente – não ser marcada por um quotidiano regrado faz com que não seja simples perceber as obrigações relacionadas com horários”, diz Catarina Martins, para ressalvar: “Isto não significa que estas pessoas saibam menos, mas é preciso perceber que, nestas condições, a vida é todos os dias uma aventura de sobrevivência. Portanto, não é fácil corresponder a uma ideia de horário.”

Apesar de o grupo ter ficado reduzido a quatro, a actriz diz-se impressionada com o resultado. “Eles filmaram o quotidiano de bairro: as pessoas, as brincadeiras… Isso foi muito bom porque as imagens feitas de dentro do táxi mostravam ruas e casas mas não mostravam pessoas, apenas vultos. Eles trouxeram o olhar de dentro. E é preciso dizer que estes miúdos têm extraordinárias capacidades intelectuais, artísticas e mesmo de organização interna.”

Ricardo Lopes, 16 anos, quer ser professor de educação física. “Qualquer coisa relacionada com desporto. Se conseguir chegar ao 12.º com nota, entro na universidade.” Também mora no Cerco e diz que só deixaria o bairro se pudesse levar quem quisesse. “Construir uma cidade minha”, ri-se. Não filmou a droga. “Se na Foz começarem a vender também vão dizer que a Foz é um sítio mau?” E depois, de novo no gozo defensivo: “Não ia estar a interferir com a vida profissional das pessoas.” É Cláudio quem retoma o tema dos estupefacientes.

“Pediram-me para filmar o meu dia. E o meu dia não é estar a fumar charros e a injectar ou a ver fazê-los isso”.)A Caminho do Resto do Mundo resulta assim num filme com vozes múltiplas que cruza o registo da peça de teatro filmado por Pedro Maia com as imagens feitas pelos adolescentes. O documentário começa com o taxista a olhar para um cartaz publicitário, com um cigarro entre os dedos. Entra no táxi, assoa-se a um lenço vermelho e põe a chave na ignição. Uma voz de mulher avisa: “É proibido registar imagens durante o percurso. Não abra as janelas do automóvel. Não abra as portas do automóvel. Fora do automóvel, não nos podemos responsabilizar pela sua segurança. Bem-vindos ao resto do mundo.”

À medida que o táxi deixa para trás a Avenida dos Aliados, no centro da cidade, e segue pela marginal do rio até à zona oriental, o actor que se senta ao lado do condutor diz o texto de Conrad como se fossem legendas das imagens da “cidade não iluminada”. Casas a cair, carros abandonados, placas a dizer “vende-se” sujas de muitos meses. “Podíamos perder-nos naquele rio como alguém se perde no deserto. E vaguear durante todo o dia por entre os baixios à procura de uma saída. Ficávamos enfeitiçados e isolados de tudo o que nos era familiar. Como se estivéssemos muito longe”, cita o actor. Mais casas degradadas, bairros compactos intercalados por estendais. As imagens feitas pelos adolescentes permitem olhar mais de perto as crianças que ali brincam com garrafas de água, raparigas a dançar numa imitação de Jennifer Lopez.

(Bárbara Ribeiro, 15 anos. Mora no Lagarteiro com a mãe e dois irmãos mais novos. Loura, unhas pintadas de vermelho, vestida de maneira a parecer mais velha, percebe-se que o gravador a deixa nervosa. “Filmei o bairro, as pessoas nos muros, os miúdos a jogar à bola e pessoas a dançar.” As pessoas dançam no bairro? “Sim. Põem música e dançam na rua. Eu também apareço porque expliquei à minha mãe como era e ela filmou.” Esconde a cara com as mãos, ri-se muito, acha as perguntas tontas. Conta que anda no 9.º ano na escola Ramalho Ortigão. “Vou até ao 12.º ano e depois não vou mais.” A mãe vive de subsídios estatais. Bárbara ainda não sabe o que há-de fazer quando for grande. “Não tirei nenhuma ideia disso.”).

O Porto morreu.

Enquanto as imagens “do lado de dentro” se sucedem, há outras vozes que surgem no filme. Vozes velhas que recordam e se queixam. “Está tudo abandonado. Os velhos morreram e os novos não querem saber”, diz uma mulher. E depois um homem: “Arranjaram maneira de a cidade do Porto ser morta. Acabaram com as empresas em volta da cidade e dentro da cidade. Agora a cidade morreu.”

Catarina Martins explica porque surgem estas vozes. “Incluímos as vozes dos moradores na banda sonora por um motivo prosaico que se prendia com a segurança do espectáculo. O táxi ia passar todos os dias à mesma hora por zonas da cidade fechadas sobre si próprias e as pessoas que lá estão podiam sentir isso como uma intrusão. Por outro, queríamos falar com aquelas pessoas, incluí-las na criação artística.”

Enquanto o táxi vagueia por descampados, arrisca caminhos sem saída, recua, ouvem-se coisas como esta: “Por aqui fora, íamos buscar o leite. Trazíamos cafeteiras e vínhamos buscar o leite, vínhamos buscar cebolas, porque eles cultivavam e depois vendiam ao público.” E logo depois o actor a insistir no paralelismo com o texto de Conrad. “Foi um grito de desgosto. O desgosto extremo geralmente toma a forma de apatia. Mas também pode levar à violência.”

Ficou feito o aviso.

(in Público, 30.01.2008, Natália Faria)
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